Paixão e folia para São João
A voz de quem chama o deserto
A voz de quem clama no deserto, a profecia de Isaías com a qual a figura de João Baptista ficou associada, surge nos evangelhos como um gesto inaugural que abre o caminho para a Palavra. João, segundo o evangelista homónimo, não é ele a luz, mas abre o caminho para ela, representa uma espécie de passagem de testemunho luminoso que fomenta aquela que era entendida como uma forma melhor de ver e de entender o mundo.
Mas os sentidos dessa vox clamans in deserto são múltiplos, complexos e a rectificação do caminho clamada por esta voz abre inevitavelmente abismos sobre si mesma. Jean Luc Nancy desmultiplica esta voz e torna-a plástica: a voz é o espaçamento de si para si mesma, o ressoar deste espaço ‘entre’, inrectificável. A voz que clama no deserto é a voz que clama o deserto, ou a voz que é o deserto, entre várias possibilidades de desmultiplicação de uma morte certa.
Por outro lado, este gesto inaugural atribuído a João está sobretudo associado ao elemento da água e ao seu potencial de transformação através da prática pela qual ficou conhecido, a do baptismo. E é este potencial de transformação, também ligado aos rituais relacionados com a fertilidade em torno do solstício de Verão, que o imaginário popular captou e projectou sob variadas formas. A noite de São João é a noite mais curta e condensada de todas as noites, onde a água, o fogo, as ervas e as práticas associadas a estes elementos ganham poderes mágicos capazes de converter ou dissolver as dimensões mais áridas ou secas da realidade. Surgem as mouras encantadas, a semente invisível e potenciadora do feto real, o orvalho que cura e transforma, as fogueiras que dissipam os maus espíritos ou que, saltadas por cima pelas raparigas, auguram futuro fértil e próspero.
Fez o acaso que a encomenda feita pelo Teatro Maria Matos para aquele que será o seu último concerto neste modelo de gestão, coincidisse com este dia especial de São João. O nosso gesto será, inevitavelmente, o de clamar este deserto que se instala, um deserto que se junta a vários outros desertos, não-lugares, mortes anunciadas, certas, ou incertas na lógica de uma mecânica singular, essa alimentada pela máquina de morte. Mas não só. A máquina de morte é infalível, imparável e irreprimível, mas a máquina desta voz traz consigo a alquimia e os poderes condensados desta noite singular: não há morte sem transformação instantânea ou futura, sem tempo. E como diz Celan, a propósito do deserto cinzento-negro,
ainda
há canções para cantar do outro lado
dos homens.
Joana Sá & Luís José Martins
Biografias dos músicos
Joana Sá
Pianista, compositora, improvisadora e investigadora. O seu trabalho destaca-se pela transversalidade, multidimensionalidade e por uma abordagem musical que procura nos limiares dos corpos (performativo e instrumental) a sua expressão singular. Estes são aspetos centrais de corpus (um catálogo poético), projeto maior e de longa duração, do qual uma trilogia para piano e disrupções sonoras constitui a primeira parte. A trilogia, começada em 2009 e desenvolvida em colaboração com Daniel Costa Neves (realizador e diretor de fotografia) é constituída por through this looking glass (2010/11); Elogio da Desordem (2013); À escuta: o aberto (2016/ ) e constitui o tema central do seu doutoramento em curso na Universidade de Aveiro (como bolseira da FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologias). Estudou ainda em Lisboa, Paris, Castelo Branco e Colónia, com Paulo Álvares e Caio Pagano, entre outros, recebendo uma bolsa INOV-ART em 2009.
É ½ de Almost a Song (com Luís J. Martins, guitarra), 1/3 do Powertrio (com Luís J. Martins, guitarra e Eduardo Raon, harpa), 1/5 da Turbamulta (com os mesmos e ainda Luís André Ferreira, violoncelo e Nuno Aroso, percussão) e ½ do novo projeto em duo com a cantora grega Savina Yannatou. Tem desenvolvido, para além disso, uma intensa colaboração com a sua irmã, a artista plástica Rita Sá.
Tem-se apresentado em concerto no âmbito de diversos festivais e em importantes programações nacionais e internacionais. Os seus trabalhos, a solo e em grupo, estão editados pela Cleanfeed, blinker – Marke für Rezentes, Shhpuma, Creative Sources e Centa, tendo recebido elogiosas críticas de diversas publicações e meios de comunicação social nacionais e internacionais. Gravou ainda para as rádios Deutschland Funk, SWR2 (Südwestrundfunk 2) e Antena 2.
Luís José Martins
Lisboa, 1978. Guitarrista, compositor, arranjador e improvisador.
O seu percurso tem-se desenvolvido em áreas tão diversas como a música contemporânea e o formato canção. Nestes dois campos a sua abordagem musical tem sido marca distintiva nos projetos em que participa, tanto em Deolinda, como em Almost a Song (com Joana Sá), Powertrio (com Joana e Eduardo Raon) e Turbamulta (com Joana, Eduardo, Nuno Aroso e Luís André Ferreira).
Estudou guitarra clássica em Lisboa, Paris, Orléans e Castelo Branco, onde concluiu a licenciatura neste instrumento. Em Paris estudou com o mestre uruguaio Betho Davezac obtendo o Diplôme de Perfectionnement (Conservatoire Marcel Dupré, Meudon/Paris).
A sua formação como intérprete e o seu interesse pela mitologia da guitarra têm sido uma marca presente no seu trabalho, tanto na procura de um discurso pessoal, como na criação de uma sonoridade que encontra no caráter intimista e na riqueza tímbrica da guitarra a sua profundidade. Por outro lado, procura explorar os limites deste instrumento através da expansão de recursos idiomáticos e de técnicas extensivas como a amplificação, uso de eletrónica, preparações e scordatturas. O resultado mais contundente deste desenvolvimento e investigação é a sua recente criação ‘Tentos, invenções e encantamentos’, conjunto de 6 peças para guitarra clássica, guitarra preparada, electrónica e percussões, editada pelo selo Shhpuma.
No âmbito da canção enquanto forma musical, o seu trabalho tem-se destacado como arranjador e compositor. Em parceria com o seu irmão Pedro da Silva Martins tem composto para destacados intérpretes portugueses, tal como António Zambujo, Ana Moura, Cristina Branco, Hélder Moutinho. A sua abordagem neste formato procura encontrar um discurso musical criativo, filiado sobretudo na canção portuguesa e na herança dos seus mais importantes criadores.
Desenvolve com Joana Sá um longo trabalho colaborativo na criação de música para teatro, cinema, projetos para a infância, etc., tendo sido ambos coordenadores da área da música do CENTA – Centro de Estudos de Novas Tendências Artísticas.
Tem-se apresentado regularmente a solo e com os seus projetos, em prestigiadas programações e gravado para diversas editoras, rádios e televisões de referência, tanto a nível nacional como internacional.
É membro convidado dos projetos 100 Moondog (de Filipe Melo e João Lobo) e Secret Museum of Mankind (de João Nicolau e Mariana Ricardo).
Savina Yannatou
Savina Yannatou estudou canto com Gogo Georgilopoulou e Spiros Sakkas em Atenas e prosseguiu os seus estudos em Londres, fazendo uma pós-graduação na Guildhall School of Music and Drama com uma bolsa da Mousigetis Foundation. Começou a cantar profissionalmente em 1979 na rádio grega 3, participando no programa diário Lilipoupolis com a compositora Lena Platonos. A sua carreira disparou logo após, colaborando com diversos compositores gregos (Platonos, Mamangakis, Kypourgos, Katsoulis, Gregoriou, Marangopoulos, Kamarotos, etc) e editando inúmeros álbuns/CDs.
Em meados de 1990, juntou-se a diversos músicos de jazz e da música tradicional, formando a banda Primavera en Salonico, com a qual interpreta sobretudo canções sefarditas e mediterrâneas e grava 8 Cds editados pela Lyra e pela ECM. Com Primavera en Salonico dá concertos pelo mundo inteiro e nas mais reconhecidas salas.
A sua enorme versatilidade é demonstrada pelo seu interesse e envolvimento ativo em diversas áreas musicais. Se por um lado é membro fundador (desde os anos 80) do ensemble de música antiga Early Music Workshop de Atenas, por outro tem-se interessado sempre por explorar e desenvolver trabalho ligado ao free jazz. Fez várias colaborações com Peter Kowald, Floros Floridis, Barry Guy, Nikos Touliatos, Gunther Pitscheider, Gerald Preinfalk, Gunther Baby Sommer, o Ensemble “Medea Electronique” e o Ensemble Constantinople.
Yannatou é também compositora (CDs Dreams of the mermaid: Is king Alexander alive?, Rosa das Rosas, Musique Des Chambres Lyra records). Tem composto música para teatro (Teatro Nacional da Grécia, National Theater of Northern Greece, Thessalian Theater, Theater of Neos Kosmos, Playback theater, para as peças: Medea, Bacchae, Ifigenia in Aulis, Dibuk, The Caukasian Chalk Circle, Persona, The Suppliants) e para performances pantomímicas.
Ocasionalmente dá workshops de improvisação vocal para músicos e atores.
Eduardo Raon
Harpista, Compositor, Performer
Desde 1998, tem desenvolvido a sua atividade, sobretudo musical, em parceria com outras formas artísticas. No campo musical e com a harpa tem trabalhado na área da música contemporânea, improvisada e neu musik, jazz e pop. No diálogo com outras formas artísticas destacar-se-á a relação com o cinema sendo harpista residente da Cinemateca Eslovena, compôs as bandas sonoras para curtas metragens de animação e longas metragens documentais e de ficção (Sonolenta de Marta Monteiro, Chatear-me-ia Morrer Tão Jooveeeem… de Filipe Abranches, Quatro Caminhos de Nuno Amorim, M de Joana Bartolomeu, Aparição de Fernando Vendrell, entre outros). Na dança, performance e teatro tem colaborado com Teja Reba, Loup Abramovici, Clara Andermatt, Álvaro García de Zúñiga e Teresa Albuquerque, Barbara Kapelj, Teresa Sobral. Radicado em Liubliana, Eslovénia, tem atuado com maior frequência lá e em Portugal, mas também pela Alemanha, Áustria, França, Sérvia, Espanha, Itália, Holanda, Rússia, Bélgica e Macedónia.
Tem gravado e atuado com I-Wolf, POWERTRIO, Quarteto Goran Krmac, Deolinda, Sofia Vitória, João Lobo, Wolfgang Schloegl, António Pedro, Turbamulta, Maria João e Mário Laginha, Bratko Bibic, Bypass, Ela Não É Francesa Ele Não É Espanhol, O Espectáculo d’Ontem e a solo também.
Nuno Moura
Nuno Moura é poeta e editor da Douda Correria e da Mia Soave.
Pedro Carneiro
Considerado pela crítica internacional um dos mais importantes percussionistas e dos mais originais músicos da atualidade Pedro Carneiro toca, dirige, compõe e leciona.
Apresenta-se regularmente como solista convidado de algumas das mais prestigiadas orquestras internacionais: Los Angeles Philharmonic, BBC National Orchestra of Wales, Vienna Chamber Orchestra, – sob a direção de maestros como Gustavo Dudamel, Oliver Knussen, John Neschling e Christian Lindberg.
É cofundador, diretor artístico e maestro titular da Orquestra de Câmara Portuguesa, que dirigiu no City of London Festival; e da Jovem Orquestra Portuguesa que dirigiu em diversas digressões europeias, destacando-se o Festival Young Euro Classic (2015 e 2017), em Berlim.
Foi bolseiro da Fundação Gulbenkian na Guildhall School (Londres), em percussão e direção de orquestra, e seguiu os cursos de direção de Emilio Pomàrico, na Accademia Internazionale della Musica de Milão.
Recebeu vários prémios, destacando-se o Prémio Gulbenkian Arte 2011, e a nomeação para o Prémio Autores 2016, da Sociedade Portuguesa de Autores, para o “Melhor Trabalho de Música Erudita”, pelo concerto na Konzerthaus em Berlim com a Jovem Orquestra Portuguesa.
Carlos Guerrreiro
Músico, letrista, poeta, compositor, produtor musical, criador e construtor de instrumentos, professor do ensino especial, escultor e marceneiro entalhador. Nascido em 1954 finalizou o Curso Superior de Educação pela Arte, do Conservatório Nacional de Lisboa, o Curso Profissional Arte de trabalhar a madeira da Fundação Ricardo Espírito Santo Silva e a pós-graduação em Estudos da Música Popular Portuguesa da Universidade Nova de Lisboa.
Trabalhou como professor de expressão musical no Centro Infantil Helen Keller, Centro de Educação Especial dos Açores, Saint Dominicq International School, Centro de Paralisia Cerebral Calouste Gulbenkian, Quinta Essência, Instituto Piaget e na Escola Superior de Saúde de Alcoitão.
É formador creditado pelo Centro de Formação Rui Grácio na área das Expressões e tem trabalhado como formador em diversos cursos de Expressão Musical promovido por escolas e sindicatos, com professores, educadores e animadores culturais.
Foi membro do Grupo de Ação Cultural (GAC) entre 1976 e 1980 e é membro dos Gaiteiros de Lisboa desde 1993.
É coautor do livro Sons para construir editado pela Plátano Editora e autor de uma entrada para a Enciclopédia da Música Popular Portuguesa, de Salwa Castelo-Branco.
Colaborou e participou em concertos, discos e outros projetos musicais com José Mário Branco, Zeca Afonso, Fausto, Júlio Pereira, Sérgio Godinho, Pedro Caldeira Cabral, Vitorino, Vozes da Rádio, Rui Veloso, Sétima Legião, Ritual Tejo, Ana Moura, Deolinda, Mafalda Arnault, Adiafa, Sebastião Antunes, Diabo a Sete, Bandarra, etc. Tem trabalhado como autor de diversas sonorizações, bandas sonoras e cenografia sonoro musical em várias peças de teatro e cinema um pouco por todo o país com grupos como O Bando, Comuna, Teatro do Tejo, Teatro da Trindade, Teatro Nacional D.Maria II, Bica Teatro e realizadores como Manuel de Oliveira, Margarida Gil, Pierre Marie Goulet, Leonel de Brito e Zeca Medeiros.
É um estudioso de matérias etnomusicológicas, sobretudo na área da organologia, construtor de instrumentos musicais e criador de instrumentos experimentais utilizados pelos Gaiteiros de Lisboa, e outros adaptados ao Ensino Especial.
Desde 2010 que tem desenvolvido com Mário Estanislau e Victor Félixum projeto de criação e construção de Sanfonas.
Menores de 18 anos: 3€
Menores de 30 anos: 5€
Sinopse
Partindo dos imaginários da Paixão segundo São João de Johann Sebastian Bach, das folias como dança e género musical de origem medieval que incorpora a loucura e, ainda, convocando as músicas ritualísticas associadas às festas joaninas, Joana Sá e Luís José Martins trazem, a partir de uma encomenda do Teatro Maria Matos, a curta mas excessiva noite de São João para dentro da nossa sala. Transfigurando o sagrado e o profano, Paixão e folia para São João congregará um conjunto especial de artistas para uma celebração única e irrepetível de um evento amplamente jubilado, intenso e sem juízo que servirá também para, de um modo solene e pouco ortodoxo, encerrar várias temporadas.