Edit Kaldor
Bio
Edit Kaldor é reconhecida internacionalmente como uma voz única na paisagem teatral contemporânea. No seu trabalho mistura elementos documentais e ficcionais e trabalha frequentemente com atores não-profissionais. Os seus espetáculos tendem a integrar o uso de vários meios digitais de forma sofisticada ainda que direta. Kaldor nasceu em Budapeste e imigrou ainda criança para os Estados Unidos, onde viveria durante dez anos antes de se mudar novamente para a Europa. Estudou Literatura Inglesa e Teatro na Universidade de Colúmbia em Nova Iorque e no University College em Londres, e trabalhou durante anos enquanto dramaturgista e videasta com Peter Halasz (Squat Theater/Love Theater, Nova Iorque), colaborando em inúmeros espetáculos e argumentos cinematográficos. Depois de se inscrever no DasArts (o centro de pós-graduação em artes performativas de Amesterdão), começou a fazer os seus próprios espetáculos, que rapidamente receberam reconhecimento internacional. Atualmente vive e trabalha em Amesterdão, escrevendo e dirigindo peças que alargam consideravelmente as fronteiras das convenções teatrais, como Or Press Escape (2002), New Game (2004), Drama (2005), Point Blank (2007), C’est du chinois (2010), WORK (2011) e One Hour (2012). Os seus espetáculos foram apresentados por toda a Europa, América do Norte e do Sul e Ásia.
Folha de Sala
Woe de Edit Kaldor
Woe, o novo espetáculo de Edit Kaldor, é de uma enorme atualidade. Não é apenas sobre abuso infantil, também recolhe — através de uma busca aparentemente ingénua no Google — uma grande quantidade de informação sobre a forma como o abuso infantil afeta o crescimento das crianças e, mais especificamente, a sua mente. Somos o que a nossa mente quer que sejamos, mas depois descobrimos que a mente não é uma página em branco, ou uma ardósia que pode simplesmente ser apagada.
Há muitas maneiras de abordar a temática do abuso infantil. A mais conhecida é sem dúvida a forma através da qual o sistema judicial tenta revelar a verdade, e nada mais do que a verdade, através da recolha de factos. É fácil perceber que esta é uma posição bastante precária. Não para o advogado ou para o juiz, porque trabalham a partir dos factos e da forma como podem ser colocados em perspetiva. Mas antes para a vítima, que muitas vezes já não é capaz de se lembrar de cada pormenor específico ou de recordar exatamente como ocorreram os factos mais chocantes. Isto deve-se, entre outras coisas, a um fenómeno dissociativo: o nosso cérebro pode decidir, mesmo antes de decidirmos conscientemente, que determinados acontecimentos não devem ser completamente assimilados, simplesmente porque seriam insuportáveis. Além disso, a descrição exata de um facto, de se ser tocado por exemplo, não diz muito sobre o seu significado real para essa pessoa, nem sobre a forma como se encontra gravado na sua mente. Mais ainda, as memórias não são fotograficamente exatas. As memórias são sempre uma reorganização, uma condensação de acontecimentos que realmente tiveram lugar, na qual a história real (uma vida inteira) é condensada até restarem apenas alguns momentos emblemáticos, que por sua vez assumem a importância de uma longa cadeia de acontecimentos de que já não conseguimos ou queremos lembrar-nos.
Woe baseia-se numa história real: uma mulher que levou a tribunal a sua história de abuso enquanto criança e descobriu que o “formato”, o storyboard de que precisou para moldar as suas próprias experiências, não fazia justiça ao que queria comunicar. Existe, claro, uma semelhança bastante evidente entre um processo judicial e o teatro: em ambos os casos estamos perante uma representação, em que todos se adaptam ao papel que lhes foi atribuído. Em tribunal, isto aplica-se sem dúvida a juízes e advogados. O seu papel é claro, a motivação das suas ações é precisa — a lei — e sabem que meios e argumentos são válidos ou inválidos. Por isso, a sua representação raramente é problemática. Já não é tanto assim para quem é chamado a tribunal enquanto queixoso ou réu — e pode até haver uma mudança impercetível de papéis. Não estão necessariamente, ou antes quase nunca, conscientes do aspeto teatral de um processo judicial, ou do facto de que apenas certos argumentos e factos são válidos neste contexto. Precisam de conhecer o espetáculo, escrever os seus papéis e dar-lhes forma durante o processo de aprendizagem. Mas como se pode representar um trauma, como se dá conta do que aconteceu de forma honesta e credível sem dar espaço a alegações ou insinuações?
Acontece que este também é um problema para o teatro “real”: como se apresenta o que é ininteligível ou inaceitável? Dificilmente o que se deseja é exibir a “história verídica” (pelo menos, é o que se espera). Como deverá ser apresentado, então, de forma a mostrar a seriedade e a extensão do problema e permitir às pessoas acreditarem no testemunho ou aceitarem a representação como a abordagem mais próxima de uma verdade que não pode ser completamente revelada ou reconstruída? Cada era terá de encontrar a sua própria resposta, mas nos nossos tempos hipermediatizados toda a “exibição” facilmente parece suspeita. Ansiamos pela honestidade, mas quando nos é apresentada tendemos frequentemente a pensar que foi encenada.
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excerto da crítica de Pieter T’Jonck publicada na revista Etcetera
Sinopse
A palavra inglesa woe significa aflição, angústia, mágoa. Três adolescentes estão no palco, perto dos espectadores. Procuram palavras na tentativa de contar uma história e guiam o público através das memórias da sua própria juventude. Progressivamente, imagens de uma infância normal são substituídas por outras que evocam sentimentos de solidão e impotência. Enquanto os atores partilham emoções e memórias de abandono e violência, a atenção vai-se centrando em tentativas de colocar em palavras essas dolorosas experiências. Até que ponto conseguimos abordar e compreender a experiência de uma infância marcada pela violência? Woe é um espetáculo íntimo sobre o poder e os limites da empatia e a coragem de olhar profundamente para o interior de cada um. Edit Kaldor, voz singular do teatro contemporâneo, oriunda da Hungria e residente em Amesterdão, regressa ao Teatro Maria Matos depois de aqui ter estreado o espetáculo C’est du Chinois, na edição de 2010 do Alkantara festival.
28 fevereiro ★ sexta → conversa com os artistas após o espetáculo