Do Coro das Vontades a um Piano nas Barricadas
Folha de Sala
Do Coro das Vontades…
No século XX, o manifesto de artistas havia servido as ambições de transformação e desafio das relações de valores estéticos presentes no discurso artístico. Trouxe também a noção da arte como instrumento de mudança das relações de poder vigentes na sociedade. Para os Futuristas, Construtivistas ou Surrealistas a arte tornava-se militante, programática e participante numa ideia de progresso que animava certos círculos intelectuais e políticos.
Para o encerramento da temporada 2011-2012, o Teatro Maria Matos propôs-nos pensar as relações entre política e arte nos tempos que correm.
A sugestão do diretor artístico Mark Deputter e do programador de música Pedro Santos passava por dar sequência a este debate no contexto da atual situação social e política. Com o crescente conflito social aberto pela crise financeira de 2008, que colocou em evidência as estruturas políticas de poder, emergiu um novo discurso crítico que visava reconhecer as liberdades e garantias cidadãs. Era o nosso objetivo pensar nas consequências desta discussão no discurso artístico e nas possibilidades que podiam ser abertas.
O Teatro Maria Matos propôs-nos partir de uma experiência artística que participa dessa discussão, o Complaint Choir, cujo sentido era dar voz aos que não a tinham. Nas conversas preliminares sobre o trabalho a ser por nós apresentado, chegámos à conclusão que nos interessava extrapolar o conceito que tinha nove diretivas específicas. Mantivemos apenas a primeira diretiva e pedimos ao público do Teatro que nos enviasse os seus manifestos, preocupações, queixas, indagações, etc…
A questão da separação entre o poder político e a cidadania é o tema central dos textos que nos foram enviados e levou-nos ao encontro das noções sobre a relação entre Estética e Política de Jacques Ranciére. Sublinhando essa cisão, Ranciére entende a Estética como “o sistema das formas a priori que determinam aquilo que é dado sentir. […] um recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do ruído” (Jacques Rancière, Estética e Política ― A Partilha do Sensível, Dafne Editora). A partir da ideia de partilha do sensível, em que os modos de vida encontram as práticas artísticas e modos de produção, o pensador francês apresenta uma possível resposta à dicotomia entre a alienação e a emancipação à qual aderimos.
É na confrontação das duas ideias, passividade e ação, que se joga o carácter político da nossa obra. Que nos leva a assumir o ato criador como o exercício de partilha de uma expressão cuja imanência e resultados são consequência da comunidade formada pelos autores e espectadores. “O que as nossas performances comprovam ― quer se trate de ensinar ou representar, de falar, de escrever de fazer arte ou de vê-la ― não é a nossa participação num poder encarnado na comunidade. É, sim, a capacidade dos anónimos, a capacidade que faz com que cada um(a) seja igual a todos(as) os (as) outros(as). Essa capacidade exerce-se através de distâncias irredutíveis, exerce-se por intermédio de um jogo imprevisível de associações e dissociações. É neste poder de associar e de dissociar que reside a emancipação do espectador, ou seja, a emancipação de cada um de nós enquanto espectador” (Jacques Rancière, Estética e Política ― A Partilha do Sensível, Dafne Editora).
Dizemos assim com Rancière que não precisamos anunciar os amanhãs que cantam a derrocada do sistema ou uma intensa batalha entre as classes para que a emancipação possa operar com consequências importantes. Essa emancipação joga-se no modo como distribuímos os papéis e contamos a nossa história. Como estabelecemos o terreno que transforma o campo social e ideológico e recusamos o modo unidirecional da atividade produtiva capitalista para recuperar a ideia de que a criação não está vedada pela especialização e pela técnica mas é um lugar onde todos se podem encontrar. Algo a que Rancière aludia como “regime estético” e que estabelece uma outra possibilidade do agir contra o determinismo económico, político e social. Esta hipótese diz-nos que talvez a engrenagem não seja feita de um mecanismo tão estrito e talvez a emancipação seja pois a consequência do ato da recusa do lugar que é confinado pela automatização. Partimos da reivindicação da vida como o momento do desequilíbrio que redescobre as possibilidades do possível. Foi nessa fissura que nos interessou trabalhar.
…a Um Piano nas Barricadas
“Sábado. Já está escuro. A Piazza Verdi e a Via Zamboni estão cobertas de destroços, de cartuchos de lacrimogéneo queimados, de pequenos cubos de mármore. A polícia foi-se embora. Cansaço. Raiva. Alegria.
Um perfume de rebelião depois de anos de submissão.
Os rostos dos companheiros sorriem; todos têm os olhos vermelhos devido ao gás lacrimogéneo. Rodam garrafas de bom vinho sacadas dos bares.
Champagne. Ganzas. Molotov…
Um piano toca Chopin. Está no meio da estrada, retirado de um bar. Logo atrás de uma barricada. Bêbados. Hoje ninguém manda. Amanhã? Amanhã chegarão com os tanques. Seremos novamente expulsos. Mas hoje, por algumas horas, esta terra é livre. Chopin. Vinho. Raiva e gozo” (texto de autoria coletiva retirado do livro Um Piano Nas Barricadas, Edições Antipáticas).
Menores 30 anos: 5€
Sinopse
Em julho de 2012, o Teatro Maria Matos apresentou Coro das Vontades, uma obra de Tiago Sousa criada no âmbito do Dia do Manifesto e baseada em diversos manifestos recolhidos junto do nosso público. Voltamos neste dia a essas palavras e músicas para refletir sobre a relação entre a arte e a política, demonstrando a contínua validade do resultado dessas intenções. A partitura, com novos arranjos e um inédito, foi entretanto registada num disco que será nesta noite oferecido a todos os que assistam ao concerto. Como complemento ao Coro das Vontades, Tiago Sousa irá presentear-nos com algumas preciosidades nunca tocadas ao vivo até este dia: a sua música para filmes — Bibliografia, de Miguel Manso e João Manso, e Canal, de Rita Nunes — e o seu magnífico dueto com Tó Trips em A Conquista do Pão, para a compilação dos 10 anos do Bodyspace. A noite encerrará com a estreia absoluta de novos temas, que também integrarão Um piano nas barricadas — álbum a editar no final deste ano. Um palco cheio de música, palavras e imagens, partilhadas por músicos e convidados especiais embrenhados em convidar-nos a participar na mudança.