Filipe Pereira e Teresa Silva
Folha de Sala
Na sinopse que acompanha O que fica do que passa está escrito “os criadores ativam a beleza, a contemplação e a empatia como motores para compreender e experienciar a peça”. Sugerem ao público que assista ao espetáculo sem procurar um significado e que se disponibilize para uma experiência mais sensorial e intuitiva?
É verdade que pensámos bastante sobre a experiência de ver esta peça. Apesar de não ter sido uma das premissas à partida, essa experiência ocupou-nos e acabou por ser uma das motivações na criação. Durante o processo, colocámo-nos em vários momentos como espectadores para perceber o que nós, Filipe e Teresa, estando nesse lugar, queríamos ver e experienciar. Neste sentido, procurámos que os materiais presentes na peça e a forma como se articulam entre si abrissem espaço a uma experiência sensorial, intuitiva, empática, física e sensível para o espectador. É óbvio que os significados acabam por estar inerentes e por emergir, mas não quisemos que fossem o fator dominante para a fruição da peça. Agrada-nos que a sua compreensão possa passar por outras vias, para além da racional.
Do lado do público sente-se um estado de expectativa permanente, como se cada cena fosse um novo começar, deixando-nos em suspenso em cada transição. No entanto, há algo que une estas cenas aparentemente isoladas e independentes.
Do ponto de vista formal, as cenas vão revelando o espaço, abrindo-o por camadas, em direção ao fundo de cena. Por sua vez, existem elementos como formas, ações, cores, significados, etc., que são transversais e que se vão repetindo em cada parte, ainda que traduzidos de maneiras diferentes. A sua recorrência permite que se reatualizem e proliferem os sentidos e as relações, que em cada momento propõem, e confirma-os como pontos de ligação.
Por outro lado e sem querer desvendar muito, esse “algo” é igualmente fruto da convergência dos nossos imaginários, das nossas referências e daquilo que achámos importante trazer para a peça.
Como exemplo, podem referir algumas dessas referências e imaginários?
Quando a música de Debussy e com ela a figura do fauno de Nijinsky surgiram no processo, elas vieram não só consolidar muitas das coisas que estávamos a procurar, como foram basilares na construção do imaginário, e consequentemente da fisicalidade e do espaço cénico. Elas ligaram um lugar de leveza, espontaneidade, excitação, felicidade, êxtase; com um lado instintivo, bruto, descontrolado, fortemente ligado à natureza; com a curiosidade e a vontade da descoberta; com a vontade de evocar algo maior que nós, que ao mesmo tempo nos contém e ultrapassa. Talvez um lugar primordial, como se tentássemos tocar as primeiras sensações: a primeira forma de desejo, a primeira forma de ódio, a primeira forma de jogo, a primeira forma de empatia com o outro; ou as primeiras formas e cores: o círculo, o ponto, a linha, o branco, o preto; ou uma primeira luz. Trabalhámos este estado primário, e talvez ingénuo, como forma de olhar para as coisas e de estabelecer com e entre elas uma relação simples.
Este é o vosso primeiro trabalho como dupla. Como surgiu e se desenvolveu a vossa colaboração?
A primeira vez que trabalhámos juntos foi em 2010 na peça O mesmo mas ligeiramente diferente, da Sofia Dias e do Vítor Roriz, e desde aí temos vindo a acompanhar o percurso um do outro. Eu [Teresa] já tinha começado a desenvolver um solo, quando o Filipe foi convidado como criador do espaço cénico e como olhar exterior. Ao longo do processo percebemos que queríamos que o espaço cénico tivesse um papel tão performativo quanto o da solista e que nos interessava explorar e contrapor os lugares de figura e fundo, de protagonista e paisagem e isso fez com que ele ganhasse uma relevância que à partida não iria ter. Com o tempo, o trabalho permitiu uma colaboração cada vez mais intrínseca e acabou por ser explorado, construído e decidido em conjunto em todas as vertentes. Em determinado momento só poderia fazer sentido partilharmos a assinatura da peça.
O que é que cada um vê no trabalho do outro e de que forma é que isso contribuiu para esta peça?
Teresa: Reconheço no Filipe um grande talento e fascínio pela possibilidade de dar vida a coisas inanimadas e de perceber do que elas são feitas e de como elas podem mover. Ele trabalha de forma objetiva e pragmática, o que o faz conectar-se com o que está aqui, com o que é físico, visível e palpável, e isso sem pré-conceitos, permite-lhe uma amplitude de exploração muito vasta. Acho que a particularidade deste olhar foi fundamental na peça. Por outro lado, ele tem um imaginário muito ligado à Natureza, ao artesanal, ao detalhe e uma leveza e simplicidade que me trouxe uma outra forma de estar perante o trabalho artístico.
Filipe: Claramente, para mim, a Teresa tem uma forma singular de fazer existir uma dança, ela nutre-se do fantasioso, do cómico, do fresco, do expressivo para se relacionar sensitivamente com o que faz. A sua poesia, que se estende além dos limites do próprio corpo, dando a ver para fora deste, permite uma vasta leitura dos materiais físicos e uma variedade de relações com o tempo e o espaço. Isso constituiu um eixo fulcral para informar o processo e para alimentar a minha abordagem aos elementos cénicos e ao meu modo de trabalhar. Naturalmente, a nossa relação pessoal foi matéria de trabalho para a criação da peça. Quisemos que a nossa afetividade transparecesse, como se ela fosse uma extensão daquilo que estávamos a viver entre nós na altura.
entrevista a Filipe Pereira e Teresa Silva por Laura Lopes, janeiro 2015