Muxama
Folha de Sala
Um Homem Livre
A primeira vez que ouvi falar no Norberto Lobo foi em março de 2013. Estava em Lisboa para a festa de lançamento da compilação e duplo LP Your Victorian Breasts que incluía dois temas de artistas portugueses: Filipe Felizardo e Syracuse Ear (David Maranha, Manuel Mota, Margarida Garcia e Chris Corsano, que estrearam o quarteto no Teatro Maria Matos em 2011). O concerto teve lugar na Galeria Zé dos Bois e os Arlt ― um duo francês composto por Sing Sing e Eloïse Decaze (que fez a curadoria da compilação) ― estavam também no cartaz dessa noite, juntamente com o Filipe e os Syracuse Ear. Cheguei a Lisboa um dia antes, na companhia de Maxime Guitton, o curador da compilação, enquanto Sing Sing e a Eloïse chegaram uns dias antes de nós e tiveram a hipótese de ver o Norberto Lobo ao vivo na Conserveira de Lisboa. Contaram-nos que tínhamos perdido uma ótima hipótese de ver um dos seus guitarristas favoritos e, de acordo com eles, o segredo mais bem guardado de Portugal. Nem eu, nem o Maxime ouvíramos o Norberto antes e fiquei profundamente impressionado por essa confiança e entusiasmo. Quando regressei à Suíça, descobri a beleza dos seus primeiros quatro álbuns e como era, afinal, bem conhecido por muita gente. Como um verdadeiro melómano, comecei a colocá-lo no topo da minha lista de guitarristas preferidos. Como alguém que gere uma editora no seu tempo livre, nem por sonhos pensei em trabalhar com ele um dia. O seu universo, tão denso e rico, a mestria da sua técnica, colocava-o inatingível para a three:four.
Uns meses mais tarde, depois de editar Sede e Morte do Filipe Felizardo, o primeiro disco de Portugal na three:four, eu recebi, através do essencial Maxime Guitton, uma mensagem a dizer que o Norberto Lobo andava à procura de editoras que pudessem editar um disco ao vivo. O meu primeiro pensamento foi de derrota, que não teria qualquer possibilidade de o agarrar. Mas decidi tentar a minha sorte e enviei-lhe um e-mail a apresentar a editora, a sua filosofia e o que lhe poderia oferecer em troca. Depois de algumas semanas, o Norberto respondeu-me a dizer que queria trabalhar com a three:four e que não seria um disco ao vivo, mas sim um novo álbum. A alegria foi intensa, seguida imediatamente de uma pressão enorme.
Mais ou menos três anos depois, a three:four tem dois álbuns a solo de Norberto Lobo ― Fornalha, em 2014, e este Muxama ― e o álbum ao vivo com o seu trio Denki Udon (com Giovanni di Domenico e Tatsushisa Yamamoto). Em 2017, veremos a edição de The Byre, um álbum com Eric Chenaux gravado ao logo de uma residência em Lausanne, na Suíça, e ainda o segundo álbum do seu sexteto Oba Loba, com quem partilha as composições com o seu cúmplice João Lobo. O que significa que, em breve, haverá cinco discos no catálogo da three:four que terão o Norberto Lobo. E o que mais me fascina é a diferença entre todos estes projetos. Além de mostrar a incrível capacidade do Norberto de tocar música tão diferente, também mostra o clima de confiança que existe entre nós e a maravilha de o ter como músico e como ser humano. Sinto-me afortunado por trabalhar com ele e por partilhar algum tempo nas vezes em que pudemos estar próximos. É um prazer falar com ele horas a fio sobre comida, casas de banho japonesas e a vida em geral. Tenho ainda de experimentar as “costeletas à lá Nor” que o Eric Chenaux, outro gourmet, me disse serem um dos melhores pratos que comeu. Tal como todos os músicos e pessoas portuguesas que tive a sorte de conhecer, sempre me tocou a bondade, generosidade e humildade do Norberto.
Depois de três álbuns na Mbari, com consistência no grafismo e na música, Fornalha e Muxama marcam uma evolução na sua discografia. Também podem ser vistas como parte de uma série ― em progresso? ― com dois semelhantes trabalhos gráficos que mostram as belas fotos do António Júlio Duarte. Musicalmente falando, estes dois álbuns mostram um Norberto Lobo mais elétrico, mais psicadélico. Adicionando efeitos à sua guitarra enquanto toca, ele distorce o tempo e o espaço para levar a sua música para uma nova dimensão. Modulando volume, intensidade, tempo e tom, ele entra numa interpretação não-linear e livre das suas composições. Todas as regras clássicas caem por terra. O Norberto Lobo conduz-nos a novas maneiras de alcançar a sua música.
Ouvir a música nos discos do Norberto Lobo é muito diferente de o ver a tocá-la ao vivo. A primeira vez que o Maxime Guitton o viu em concerto, escreveu “Norberto Lobo is a motherfucker”. É claro que isto tem de ser entendido como um elogio. Quando o Norberto toca ao vivo, ele brinca com a sua música. Ele está sempre a reinterpretar-se, a modular a velocidade, o comprimento, a ordem e a intensidade. Costumo dizer que o Norberto é um guia. No início do concerto, sabemos que o fim vai acontecer dentro de uma hora. Mas a direção, os caminhos que nos guiam são um assunto que só ao Norberto diz respeito. E o mínimo que podemos saber é que será não-linear. As mudanças podem ser repentinas ou suaves, a audição exigente ou meiga, a velocidade frenética ou lenta. Dada esta imprevisibilidade, não temos outra solução que não aceitar a sua condução. É importante perceber que ele não toca para mostrar a sua incrível destreza técnica, mas sim para se unir ao seu público. Para quem aceita perder-se, esta jornada nunca se repete e é sempre fantástica, surpreendente e inesquecível. Em La Claire Fontaine, o escritor francês David Bosc fala do pintor Gustave Courbet: “Nenhum caminho é o caminho da liberdade. Quando alguém está livre percorre por todos os caminhos”. Assim é com o Norberto Lobo.
Gaëtan Seguin (A&R da three:four, editora de Muxama)
Sinopse
A carreira de Norberto Lobo entrou confiante naquele lugar resplandecente onde a cada nova obra (e concerto!), os adjetivos parecem colar-se como uma segunda pele de tão abusados que são. Com uma discografia pausada e pensada, sabemos que Norberto diz-nos coisas quando sente que é imperioso escutá-lo, e ao fim de cinco discos em nome próprio prevemos com facilidade que o seu sexto álbum nos irá conquistar, brilhando como um astro raro enquanto povoa as listas dos melhores discos portugueses do ano. Temos tido a sorte de o receber muitas vezes no Teatro Maria Matos – em duo e sexteto com João Lobo, mas também como convidado de Ben Frost, Filipe Felizardo ou Benjamin Verdonck -, mas esta é a primeira vez que estendemos o tapete vermelho a um concerto a solo, que estreia o seu novo álbum, Muxama. Editado pela suíça Three:Four, este disco oferece-nos um destro passeio pela fantasia onírica musical de Norberto Lobo, deslizando, peça a peça, por uma consciência escultural sonora, emocionante, elétrica e deliciosamente panorâmica. Apesar da escrita brilhante, o movimento de Muxama é largado à espontaneidade e entregue às vibrações do corpo e espírito, deixando-nos cúmplices da ondulação da sua música. Por outras palavras, a Muxama que escutarmos nesta noite jamais se repetirá.