Love Song
Folha de Sala
“A minha personalidade musical é o ecletismo”, disse Luís Lopes em entrevista ao site Bodyspace. Há 6 anos, este statement cunhado pela ambição servia para mostrar como o músico lisboeta encarava a música e o seu percurso, sempre pronto para abraçar novas ideias, novas colaborações, novos desafios. É hoje um dos guitarristas que melhor se destaca da proa do jazz em Portugal, mas quem o ouve percebe que não é um músico que tenha ficado contente com a escola do jazz. De facto, dessa escola retirou muito pouco em quatro anos, com uma desistência pelo meio – o jazz prometia-lhe liberdade mas a irreverência e força do rock sempre o desencaminhou, tal como o fizera quando em adolescente defendia o punk ou o metal. Mas com o tempo e experiência, Luís Lopes foi percebendo que a improvisação do jazz lhe dava algo muito caro para a sua incessante busca por mais conhecimento: um campo infinito de possibilidades sempre em permanente reconfiguração.
Estreia-se nos discos com o seu Humanization 4tet em 2008, liderando Rodrigo Amado (saxofone), Aaron Gonzaléz (bateria) e Stefan Gonzaléz (baixo) numa vontade de partilhar emoções em alta intensidade. Durante anos, este foi o projeto assinatura de Luís Lopes, partilhando com estes músicos a benigna indecisão entre o jazz e o rock. Aaron Gonzaléz, ao site Le Cool, por alturas da estreia do quarteto no Jazz em Agosto de 2011, explica essa dupla categorização: “o Humanization 4Tet existe numa altura em que o jazz e o rock estão a ser fundidos há imenso tempo, muito antes de eu ter nascido. (…) Mas os media ainda marcam estes géneros como realmente separados. Como, quando pensas em rock, pensas no mais básico denominador comum. Quando pensas em jazz, e quando ouves uma estação de rádio, são sempre as coisas mais básicas. (…) Acho que o ponto principal é que, como grupo, tomamos tão diferentes aspetos da música em geral que podemos fluir livremente entre esses mundos sem pensar nisso”.
Em Abril de 2011 e Janeiro de 2012, Luís Lopes toca a solo na Galeria Zé dos Bois, propondo uma vez mais pulverizar as suas fronteiras: convenientemente intitulado Noise Solo, ouvimos duas sessões unidas pela força dos seus argumentos elétricos, como se a sua vida dependesse da vitória contra a sua própria música, numa corrida contra o impressionante muro de feedback que avança contra si e contra nós. A improvisação e o controlo da imprevisibilidade unem-se num caminho inesperado para nos levar numa viagem que nos marca o corpo. Ao site FreeForm, FreeJazz, explica-nos a importância do noise na sua formação e na sua produção: “penso que talvez seja uma ligação com a música pesada que ouvia na adolescência, e depois com a mais psicadélica e sónica de mais tarde. O punk/hardcore, o metal, os Hawkwind, os Can, os Led Zeppelin, também os Velvet Underground e os Bauhaus, etc. Claro, agora com outra perspetiva. Não sei bem! Só sei que a improvisação através da exploração sónica da imprevisibilidade do feedback me fascina! Esse jogo entre mim e essa quase total imprevisibilidade do disparo sonoro de feedbacks é uma viagem impressionante. O volume de som é tremendo. No máximo! De repente tudo se transforma numa enorme fusão homogénea entre mim, a guitarra, o amplificador, os pedais, o som e público também. Tudo num corpo só. Quando funciona é brutalíssimo para todos. Para isso é preciso o triângulo performer-som-público/ambiente constituir um triângulo equilátero perfeito. Pois, depressa descobri que nenhum desses polos pode ser mais forte ou mais fraco do que os outros, e isso é que é um desafio maravilhoso: perceber que estás a lidar com algo que não dominas completamente, uma espécie de ser aglutinador que te engole em três tempos se não forçares também. E depois, uma coisa muito curiosa, que é sentir que me alieno de mim próprio e me junto ao público para ver a minha própria performance. É muito interessante. Daí o público fazer parte do triângulo, pois, dessa forma, o público “sou” também “eu”. E depois disso, é ouvir o resultado por fora, em disco, baixo ou alto, não interessa, música apenas!”
Nos últimos anos, Luís Lopes tem multiplicado os seus projetos, colaborações e edições, dando-nos mais razões para valorizarmos o seu papel na cena europeia: com o saxofonista Jean-Luc Guionnet vai dialogando com assaz frequência e intimidade; com o baterista Christian Lillinger e o contrabaixista Robert Landfermann traçou uma ponte sonora altamente frutífera desde 2011, chamada Lisbon Berlin Trio; Noël Akchoté, Adam Lane, Joe Giardullo ou Sei Miguel, são outros dos músicos que têm povoado o seu caminho. Muito trabalho, muitas ideias e muitas experiências que não podiam senão dar confiança à energia que Luís Lopes deposita na sua guitarra. Em janeiro de 2015, o seu instrumento volta a ser primordial na sua vida, quando é com ele que decide curar algumas das suas feridas abertas. Em casa, sozinho, teceu uma filigrana emocional, tingida de blues sofridos, improvisando um lamento intuitivo e íntimo, aceitando o risco de uma empreitada dolorosa, em movimento circular em torno de um campo gravitacional de notas escolhidas com o ouvido e o coração. Luís Lopes explicou-nos como esta Love Song nasceu, numa noite, no silêncio: “Toquei-o em situação desesperada por causa de separação da pessoa profundamente amada. Como um remédio para a solidão inerente ao vazio. E gravei, para ouvir depois. Não sei bem porquê, assim como quem escreve um diário apenas para desabafar, ou aliviar a dor. Evoluiu para este disco. Uma espécie de hino ao amor. Uma Love Song. Um poema sobre uma história simples de amor. Esta história particular, é um jogo meio caótico entre improvisação e composição, intuição e organização, com imposição constante do fator casual e circunstancial. Frágil. Portanto, aberta e mutante também, dependendo de estímulos. Uma cadência suspensa lenta, melancólica, de notas, escolhidas e interligadas sobre uma fórmula não convencional, uma rendição completa aos instintos mais primários do coração, o meu coração, a minha mente. Pelo menos é esse o objetivo maior e a razão desta Love Song existir. Não ter soluções. Vivê-la, explorá-la apenas. Uma peça totalmente existencialista. Quem amou e se entregou assim, sem fronteiras nem barreiras, nem limites nem travões, amando o próprio amor, sabe o que quero dizer!”
Menores 30 anos: 5€
Sinopse
Há duas imagens muito fortes que nos aparecem quando pensamos nos solos de Luís Lopes. A primeira, menos óbvia e meramente ilustrativa, coloca o músico numa espécie de luta sem tréguas com a sua guitarra e amplificador, um duelo físico e contorcionista em que o seu corpo ondula como que conduzindo parte da eletricidade que se ouve. A segunda, mais evidente, atinge-nos demolidoramente, como se um soldado noise, de munições invisíveis, nos assaltasse sem piedade. Em janeiro de 2015, no seu quarto, Luís Lopes formalizou sozinho uma outra ligação à sua guitarra, servindo-se dela para carpir algumas das mágoas de uma recente separação amorosa. Da dor nasceu um lamento arrebatador, feito a uma só voz, em jeito de confissão, criando um manto melancólico que suspende as notas na atmosfera como gotas, fazendo-as vibrar de emoção enquanto caem em lenta cadência. Uma vibração de amor cristalino, onde se sente uma verdade no ar, transparente e honesta, que se partilha connosco num gesto de absoluta generosidade. Love Song é um salto de fé, feito de intuição e composição espontânea, onde cada nota e acorde se interligam com os seguintes de modo miraculoso, empurrados para seguirem um caminho que só o coração sabe indicar. Love Song é um momento ímpar na produção jazz de Luís Lopes, e também um ponto de alta incandescência na discografia nacional; e é um absoluto privilégio sermos convidados a escutar de bem perto o batimento da sua guitarra. Raramente o adjetivo íntimo serviu tão bem um concerto.