Sarah Vanhee
“There’s no such thing as society”
Folha de Sala
Lecture for Every One
No momento em que escrevo, não tive a experiência — nem vi, nem ouvi — de Lecture for Every One, de Sarah Vanhee. Nem sequer li o texto da palestra. Nesse sentido, estou na mesma situação daqueles que podem convidar Vanhee — ou aceder à sua proposta de se convidar a si própria — para o seu encontro geral anual, a sua conferência de vendas mensal, o seu grupo de apoio semanal, ou eventos únicos na vida como uma tomada de posse, uma festa de casamento ou uma despedida do trabalho. Como tal, a sua atuação surge no horizonte como uma espécie de promessa: mas uma promessa de quê? Imagino o que seria se Vanhee trouxesse a palestra para o tipo de ambiente que me é familiar, uma reunião de comissão universitária, digamos, na qual — independentemente do que mais possamos ser para nós mesmos ou para os outros, durante o resto da vida: pensadores, professores, escritores, ativistas, amigos ou adversários — concentramos os nossos seres, normalmente caóticos e multiformes, em formas de racionalidade distribuída e codificada, com interesses e modos de capacidade burocrática mais ou menos identificáveis. Quem ou o que seria Vanhee nessas circunstâncias? Uma estranha na sala? Uma representante de uma outra parte qualquer do aparelho institucional, propondo a sua estranheza como um item na nossa agenda? O que é que ela diria? Como é que se comportaria? E como é que nós deveríamos responder? Faríamos o que se espera que esses ajuntamentos façam: debater a questão — o que quer que venha a ser a questão — depois tomar nota nas atas e comprometermo-nos com um plano de ação? Que tipo de ação — que tipo de decisão — é que a intervenção de Vanhee nos pode incitar a ter, se é que alguma?
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Ao debater algumas das ideias por detrás de Lecture for Every One, Vanhee fala do conceito da Grécia Antiga de parrésia, ou liberdade de expressão, no sentido de palavras proferidas em público de uma forma que põe o orador em risco, discurso que enfrenta o medo de dizer a verdade – no que diz respeito ao poder, no que diz respeito aos estranhos — discurso, pode dizer-se, que põe em risco a própria verdade. É sabido que não há nada de simples — nem nada de demasiado direto — acerca da liberdade de expressão concebida desta maneira. Como Foucault observou, nas suas palestras tardias sobre a parrésia, o que está em causa não é “a divulgação de um segredo que tem de ser escavado das profundezas da alma”, mas antes “a relação do próprio com a verdade ou com um princípio racional qualquer”. Essa dissimulação só pode ser exacerbada quando Vanhee traslada a sua palestra, concebida em larga medida para espaços não artísticos, para o espaço público bastante específico do teatro, como o fará, esta primavera, no Kunstenfestivaldesarts. No entanto, talvez a promessa peculiar de Lecture for Every One também tenha a ver com estabelecer uma diferença entre um gesto concebido, por um lado, de forma mesmo muito simples e direta — “devia ser possível”, diz-me ela, “basicamente, é apenas uma pessoa que diz umas coisas, uma pessoa que fala para outras pessoas” — e, por outro lado, como algo difícil no cômputo geral. Como a própria Vanhee assinala, mesmo o título da sua palestra — pondo de parte o elemento auto-evidente de ambição excessiva — é um equívoco: poderá uma palestra para “toda a gente” ser, ao mesmo tempo, uma palestra para “cada um”? Que tipo de relações, entre indivíduos e o colectivo, entre cidadãos e estranhos, entre um eu e os seus vários outros eus e todos os seus outros amados e ignorados estariam em causa nessa distinção?
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Vanhee retoma o fio do amor e da violência, quando nos encontramos para conversar. “Para mim”, diz ela, “este problema do estranho é muito importante; o estranho, não enquanto algo que deve ser repelido ou aceite, mas enquanto algo que nos muda profundamente, algo viral que só nos pode transformar. Isso tem qualquer coisa quase brutal e eu gosto dessa brutalidade.” Ao discutir o seu próprio papel na Palestra, enquanto atriz, personagem, enquanto outro tipo de atuação aporética, uma forma de registar — a par da simples possibilidade referida anteriormente de uma pessoa falar para outras pessoas — ela também fala acerca dos graus de impossibilidade inerentes ao projeto. Ela sugere que está lá, nos lugares para onde é convidada, como “a palhaça, a estúpida, talvez uma ‘ninguém’ ou uma ‘toda a gente’, como um elemento desse ‘estar entre’. É um papel complicado, porque não posso falar de ‘nós’, nesse momento; não há nenhum ‘nós’ de que possa falar. E, ao mesmo tempo, também não posso falar de ‘vós’, porque não conheço nenhum ‘vós’. Consequentemente, só posso falar de mim. Mas não posso falar de mim como um exemplo.” Se não um exemplo, sugiro-lhe eu, talvez no seu papel — enquanto intrusa, convidada, mensageira, parasita, analista ou uma funcionária de outra realidade mundana de visita que, pela sua própria existência, chama a atenção para as estruturas contingentes e limites da situação a que chega — ela também traz uma potencialidade à situação que sempre já lá esteve. Uma espécie de elasticidade: não tanto no sentido de uma situação que se expande por si só, orgulhando-se da sua capacidade de acomodar — e talvez domesticar e incorporar — o elemento estrangeiro, o estranho, mas antes a própria palestrante, fazendo parte da situação, enquanto lá estiver, trazendo ela própria essa elasticidade e depois… levando-a. Chamemos-lhe uma elasticidade da imaginação, que talvez corra o seu risco mais revelador — para evocar o tema anterior da parrésia — quando enfrenta a banalidade, o quotidiano, a ubiquidade do medo. “Uma grande parte da nossa imaginação”, diz-me Vanhee, “está a ser preenchida com medo. O medo exige tanto da imaginação. Então, como abordar a imaginação de outra maneira que não preenchê-la com medo? Penso na sociedade em que vivemos como uma ficção em que decidimos acreditar. Uma das questões que me coloco, neste projeto, é: em que outro tipo de ficção acharia eu interessante acreditar? Que outras imagens daí advêm? Que outras línguas daí advêm?”
Tanta promessa, tanto que se podia prometer e imaginar. Mas prometer também pode ser uma espécie de armadilha. Como a própria Vanhee admite: “Não é a palestra para toda a gente; é apenas uma palestra, para cada um.” Faz diferença. “De qualquer modo, acho que não será suficiente”, afirma, “porque, quando lhe digo ‘palestra para toda a gente’, você sonha com isso. Eu também sonho. Mas isto nunca pode ser isso. Não é um discurso de sonho; na verdade, é muito pouco espetacular.” Digo-lhe que estava a imaginar que podia não ser espetacular. Na ausência do evento, algo está a tomar forma. Voltamos à questão da atuação enquanto substituto: da imaginação do elemento do estranho, de algo ainda não proferido, não pensado, não feito; de algo ainda por surgir, mesmo que seja uma contribuição fugaz para as lutas do meio quebrado e do trabalho do amor. “Provavelmente, tem muito a ver com o amor”, diz Vanhee, “no sentido em que o amor é manter esse espaço aberto para o que quer que entre, mesmo que nunca se saiba o que será. Claro que o que é perverso é que as pessoas não me ‘dão’ esse espaço; eu, basicamente, tomo-o. Coloco-os na situação de me terem dado esse espaço, de modo que há algo de muito enfático nisso. Não sei se ficará desta maneira mas, no texto, como está agora, eu também digo ‘obrigada por me darem tempo para falar nos próximos 15 minutos’. Mas não foram eles que decidiram dar-mo. Há algo de violento nisso.”
Professor Joe Kelleher, março de 2013
Diretor do Departamento de Drama, Teatro e Performance
Universidade de Roehampton
Sinopse
Lecture for Every One não é um espetáculo, é uma intrusão amigável, um vírus benigno que se propaga nas veias da cidade. Durante uma semana, entre 7 e 14 de dezembro, Sarah Vanhee e Anabela Almeida juntar-se-ão a reuniões e assembleias em vários contextos ― uma conferência num hotel de luxo, uma assembleia municipal, uma reunião do sindicato, a reunião de equipa de uma multinacional, um ensaio de um coro de igreja ― para dar uma pequena palestra.
Apenas uma pessoa sabe da sua visita, para todos os outros a sua gentil intromissão é uma surpresa. No seu discurso, Sarah Vanhee procura abordar os cidadãos como indivíduos e como coletivo, evitando a linguagem impessoal da lei, da política, da comunicação social e da publicidade. “Lecture for Every One é um conjunto híbrido de histórias e reflexões políticas com um impulso performativo. No texto, abordo algumas das minhas preocupações acerca da nossa convivência e da condição do comum. Tento repensar uma ética do comum e da partilha, propondo novas ficções, diferentes das que predominam na sociedade ocidental contemporânea.”
No último dia da sua estadia, Sarah Vanhee fará uma apresentação do projeto e uma visita guiada ao seu percurso inusitado por pequenas e grandes reuniões na cidade de Lisboa. Acompanhe a semana de Sarah Vanhee em Lisboa no website lectureforeveryone.be e nas redes sociais Facebook e Twitter.