Victor Hugo Pontes
Folha de Sala
Em 2015, celebramos o Dia Mundial da Dança com Victor Hugo Pontes e as suas duas novas criações para públicos diferentes no mesmo espaço cénico: Cair, no âmbito da programação para crianças e jovens, e Fall para o público em geral e para adolescentes. Aqui fica uma breve entrevista a propósito de ambas as criações.
Quando decidiste que querias ser coreógrafo?
Na verdade, eu não decidi nada – as circunstâncias decidiram por mim. Quando era miúdo, dançava num rancho folclórico, porque a minha família não tinha capacidade financeira para me inscrever numa escola de dança. Além disso, naquele tempo e numa cidade de província, como é o caso de Guimarães, não era lá muito bem visto um rapaz praticar dança clássica mais conhecida por ballet. No rancho folclórico pelo menos dançava, já era qualquer coisa e isso deixava-me feliz. Muito mais tarde, depois de ter estudado Artes Plásticas (Pintura) na faculdade de Belas Artes do Porto e Teatro numa escola profissional na mesma cidade – o Balleteatro, percebi que a dança era a linguagem artística onde eu conseguia dar forma a todo o conhecimento que tinha adquirido ao longo do tempo através da minha formação. E foi assim que comecei a coreografar – que para mim é desenhar no espaço com os corpos dos bailarinos e os seus movimentos. Só que é um desenho que se está sempre a construir e a apagar e só fica na memória de quem o vê.
Porque é que o teu espetáculo se chama Cair?
Antes de criar o espetáculo Cair, construí outro espetáculo chamado Fall, que é como se diz ‘cair’ em inglês. Mas a palavra “Fall” em inglês também tem outros significados, como por exemplo “outono”, que curiosamente é a altura do ano em que as folhas caem das árvores. A palavra em inglês é também usada juntamente com outras, e cria expressões como ‘fall in love’, que significa ‘cair de amores’, ‘apaixonar-se’. No espetáculo Fall, explorei os diferentes significados dessa mesma palavra. No espetáculo Cair, procurei criar um lugar sem gravidade, um lugar onde não se cai e onde nada é grave.
Onde gostas mais de cair?
Na cama, quando estou cheio de sono.
Achas que cair também pode ser dançar?
Sem dúvida. O movimento da queda faz parte do vocabulário dos movimentos de dança, da mesma maneira que, por exemplo, os saltos e os giros.
E dançar a cair?
Gosto mais de dançar até cair.
Cair na Lua, onde não existe gravidade, também é cair ou é mais deixarmo-nos poisar no chão com o corpo todo?
Na Lua não existe gravidade, que é a força responsável pelo facto de todas as coisas, inclusivamente nós, serem atraídas para o centro da Terra. Se a força da gravidade não existisse, seria impossível viver no nosso planeta, porque todos os objetos e seres vivos estariam soltos no espaço. Na Lua, temos de fazer um esforço para conseguir tocar no chão, e por isso nunca há um embate violento dos corpos com o chão. Somos nós quem tem de forçar esse contacto.
Tens algum truque para cair sem magoar?
Nenhum. Estou sempre a cair e estou sempre a magoar-me. Mas agora é mais difícil levantar-me.
Tens algum truque para nos ensinares a fazer o que os bailarinos fazem no palco?
O que os bailarinos fazem no palco resulta de muito estudo e treino, justamente para que não se magoem a fazer os movimentos. Para se alcançar um grande nível de controlo em relação aos movimentos e ao espaço que cada bailarino tem à volta e pode ocupar é preciso estudar e trabalhar muito. Mas o mais importante é andar com os olhos bem abertos, para não tropeçarmos nem deixarmos que alguém nos empurre. Mais importante ainda é ter as mãos sempre prontas para nos ajudarem a levantar de cada vez que caímos.
Como é que surge esta vontade da “queda” que origina o Fall?
O que me interessa na palavra ‘fall’ são os seus múltiplos significados. A ideia de queda física, a ideia de Outono (e de fim de ciclo), a ideia de cair de amores, até mesmo a ideia de queda em sentido bíblico. Claro que, ao usar esta palavra como título para um espetáculo de dança, a associação mais evidente é a de ‘queda’ tout court, desde logo porque subsume todos os outros significados. Seja como for, já não me recordo do que surgiu primeiro, se foi a vontade da queda ou se foi durante uma queda que encontrei a palavra ‘fall’. Mas nesse momento falar sobre queda foi essencial.
Fall é o teu último trabalho coreográfico. Depois de Fuga Sem Fim, A Ballet Story, ZOO há algo que tenhas experimentado neste que ainda não o tivesses feito antes e que sintas que pode contribuir para um nova fase do teu trabalho?
Sempre que começo um novo projeto tento ir para um lugar que ainda não conheça e tento encontrar a linguagem certa nesse lugar. Diria que Fall é um trabalho diferente dos anteriores, sim, mas ainda não tenho distância suficiente para avaliar isso com clareza. É sempre mais fácil para os espectadores reconhecerem essas diferenças.
Em Fall trabalhas quatro ideias fundamentais: quedar-se de amores, a queda bíblica, no outono, a aproximação de um fim de ciclo na natureza, e o movimento da queda física. Como foi o processo de sintetizar um conceito e uma ação tão vastos em apenas 4 pontos?
Não existe um esforço de síntese. Pelo contrário, existe um esforço de dispersão. Seria muito ingénuo e pretensioso da minha parte propor aquela que poderia ser a história do homem em cerca de uma hora, num só espetáculo. As quatro ideias que escolhi trabalhar em Fall poderiam multiplicar-se em muitas mais. Mas foi essencial delimitar o objeto de reflexão para que fosse possível fechar possibilidades e construir um espetáculo com solidez dramatúrgica. Não me interessa mostrar uma narrativa linear, e muito menos uma arrumação de conceitos. O que é interessante nos conceitos é a complexidade compactada. Gosto de pensar que Fall é isso. Espero que seja.
A ideia da queda também pressupõe a ideia de nos pormos de pé e talvez por isso caímos por estarmos de pé numa espécie de ciclo, estar de pé para cair. É uma coreografia de equilíbrio? Ou de persistência?
Se tiver de ser alguma coisa, diria que é uma coreografia de perseverança. Fall explora dois tipos de queda: a queda física, visível, e uma queda interior, invisível a olho nu. Por isso é mais uma metáfora do homem e do seu percurso de vida do que propriamente uma alusão ao mundo que nos rodeia. Claro que, se não nos levantarmos, nunca voltamos a cair. E isto vale para o que está à vista e para o que está escondido. Daí a ideia de perseverança. E daí também a pertinência, creio, deste espetáculo. Cairmos e voltarmos a erguer-nos é uma espécie de coreografia estrutural da vida.
Podemos dizer sobre o teu trabalho que tens queda para a queda? Ou seja que gostas de trabalhar esse instante que é o movimento inesperado de cair?
Podem dizer do meu trabalho o que quiserem. Falando a sério: gosto de trabalhar a partir de movimentos que são ações em si mesmos. Talvez isto tenha que ver com a minha formação em teatro – para mim, o movimento nasce de uma ação. E para que haja ação tem de existir conflito. É uma premissa narrativa e dramatúrgica básica. Em Fall, o mais difícil foi criar conflitos sem que os mecanismos fossem ilustrativos ou descritivos. Pensar no que está antes do momento da queda, no que precede o instante em que caímos. Por isso é que a cenografia cria uma barreira visual no horizonte: não sabemos o que está antes nem o que acontece depois nem o que está para além da nossa linha de visão. Essas são as peças do puzzle que o público tem de encaixar.
É difícil coreografar uma ação sem ser redundante?
Uma ação executa-se. A forma como se executa pode ser coreografada.
Quais são as grandes diferenças entre Fall e Cair?
Fall está nos antípodas de Cair. Em Fall estamos sempre em queda, no Cair procura-se um lugar onde não se cai e onde não existe gravidade.
Em Cair tentaste apresentar as mesmas ideias que te inspiraram para a criação de Fall?
Seria ingénuo e pretensioso transferir para um espetáculo infantojuvenil a complexidade de Fall. O ponto de partida, no entanto, foi o mesmo, claro. Mas, tendo em conta os diferentes públicos, a glosa de Cair remete para um onirismo imaterial que se calhar não existe em Fall. As quedas de Fall são sempre muito duras, e é um espetáculo mais denso. Em Cair procurei quase de forma ingénua um lugar onde não se cai, onde tudo é perfeito, onde nada é grave. Quando somos crianças estamos sempre a cair – faz parte da aprendizagem para conseguirmos caminhar, correr, pedalar, dançar. Destas quedas, esquecemo-nos rapidamente, e depressa nos pomos de pé. Quando somos adultos, continuamos a cair – caímos menos vezes, mas custa muito mais levantarmo-nos. Esta diferença elementar é fundamental para se perceber as diferenças entre Fall e Cair.
Entrevista por Susana Menezes, abril 2015
Sinopse
Em 2015, celebramos o Dia Mundial da Dança com Victor Hugo Pontes e as suas duas novas criações para públicos diferentes no mesmo espaço cénico: Cair, no âmbito da programação para crianças e jovens, e Fall para o público em geral e para adolescentes.
Os nossos corpos caem no chão se os abandonarmos, assim como todos os objetos quando os deixamos cair. Todos seguem na mesma direção: o chão. Por que é que isto acontece? Por causa da força da gravidade do planeta Terra. É devido a esta força que todas as coisas assentam na superfície, inclusive nós, humanos. Se ela não existisse, não viveríamos na Terra, pois todos os objetos e seres vivos estariam à solta no espaço, o que significa que não existiríamos tal como somos.