Folha de Sala
The Redeemer, registo de 2013 editado por Dean Blunt na carismática editora norte-americana Hippos In Tanks (HIT), será, sem grande dúvida, dos discos mais inesperados lançados na esfera da música independente deste ano. A progressão da carreira de Blunt, primeiro em duo com Inga Copeland nos essenciais Hype Williams e agora a solo, é tão imprevisível quanto outros discos publicados na HIT — veja-se o caso de Far Side Virtual de James Ferraro, que tanto foi álbum de 2011 na britânica The Wire, considerado responsável por inventar um (provavelmente mais do que um) estilo por si só, como continua a ser enxovalhado por algum público que resiste as novas direções do génio de Ferraro.
Foi ao vermos a apresentação recente no festival Unsound, na Polónia, que entendemos ainda melhor a natureza do trabalho captado no disco The Redeemer. Trata-se, acima de tudo, de uma peça de teatro musical, ainda que funcione também como um disco. Contudo, é ao vivo que esta música melhor se exprime, sendo filha de fontes tão diversas como alguns compositores clássicos contemporâneos (Bryars, Pärt), a história da bass music londrina (escola essencial já nos Hype Williams), ou ainda do trabalho de cut’n’paste iconográfico/totémico que Dean Blunt sempre tem vindo a aplicar, dando novas possibilidades de existência a imagens, música e artefactos da cultura mais e menos popular, mais e menos atual, revelando-se na sua real dimensão paradoxalmente totalizante e fragmentária (= somos todos tudo o que vemos e partilhamos; somos todos uma visão subversiva do consumo coletivo).
A cenografia é invulgarmente cuidada para um espetáculo de música (eletrónica), tal como a carga teatral e narrativa que perpassa toda a actuação em roda deste trabalho. Cada peça/situação performática surge como uma vinheta do que é, acima de tudo, um opus debruçado sobre uma separação entre duas pessoas muito próximas, no processo de lidar com o pós-colapso de um relacionamento. É sobre compreensão, perdão, compaixão, entendimento, resolução, redenção — depois da dor da despedida à intimidade antiga, para sempre (e tragicamente) perdida.
Episódios sucedem-se sem uma carga dramática gratuita; antes pelo contrário — encontramos aqui um despojamento/exposição ética e emocional de enorme maturidade, lucidez, autenticidade e discernimento analítico — para lá do território lírico-dramático, e com um desbragamento arterial que transcende até a análise filosófica canónica das relações. Por detrás de todo o fumo, e intensa encenação lumínica do espetáculo, está um recital de frontalidade, transcendendo as tóxicas cortinas da velada, dissimulada e hipócrita pós-modernidade. Do mais tocante, visionário e original trabalho apresentado em palco, neste nosso tempo de não-assumir, não-ser, não-dizer, não-dar; um tratado sobre a brutalidade dos factos do coração, do humano, e dos princípios que nos devem/deviam servir de bússola para um entendimento desimpedido de táticas e inverdade. The Redeemer — esperamos que para vocês também — surge como uma revelação cheia de indizibilidades, que revigoram a necessidade imperativa de continuarmos, na nossa enorme solidão, a tentar fazer sentido.
Filho Único
Menores de 30 anos 5€
Sinopse
Operando na penumbra e cultivando uma tímida visibilidade, os Hype Williams não precisaram de melhores e maiores meios para construírem uma revolução sonora ímpar no outro lado do espelho da pop. Deixaram para trás, entre 2009 e 2012, um corpo de trabalho notável, contagiando e influenciando uma grande geração de músicos que agora procuram a luz do sol. Praticando o enigma, Dean Blunt e Inga Copeland entregaram-se de corpo e alma à tarefa de nos atrair e repelir, confundindo-nos permanentemente ― também em palco ―, mas oferecendo música que poucos conseguiram prever. Pop experimental, música de dança alternativa ou soul hipnagógica são algumas das tentativas de categorização condenadas ao falhanço ― um falhanço divertido que apenas anuncia a amplitude criativa dos cérebros que ativaram Hype Williams. Com The Redeemer, o primeiro álbum a solo, Dean Blunt prometeu limpar a neblina lo-fi e tornar-se sério. Voltou a enganar-nos, apenas dizendo meias verdades: sim, ouvimos agora algumas das suas mais perfeitas e cristalinas canções e arranjos, mas tudo se movimenta ainda com liberdade e subversão oblíquas num mar de infinitas possibilidades. The Redeemer é uma obra tocada pelo génio, feita como um filme inclassificável sobre amor, sobre a sua perda, que no palco terá uma encenação e narrativa à altura da ambição, com algumas novidades guardadas para bem da surpresa. Se alguns concertos de Hype Williams ficaram míticos, não vão ter de esperar menos do que isso para esta noite; é que Lisboa já foi a casa de Dean Blunt e este é um regresso mesmo especial.
Em colaboração com a Filho Único