Dysnomia
Folha de Sala
Há algo de muito saudável e recomendável na atitude destes três músicos quando decidiram saltar da sua elogiada estreia para o difícil segundo álbum do modo como o fizeram. First foi o primeiro disco, nascido em 2010, que seguia o instinto do free jazz, enquanto Dysnomia, três anos depois, arrumar-se-ia num local sem terminologia correta. Apesar de algumas das novas opções sonoras deste disco possam ser justificadas refugiando-se no jazz, outras categorias isoladas também podem ser convocadas, mas só servem para confundir. Na verdade, Dysnomia é uma daquelas obras que só parece ter uma categorização correta quando se juntam várias palavras por hífens, diminuindo o risco de erro, mas aumentando, proporcionalmente, o alcance da sua música. Ao site Under The Radar, os Dawn of Midi explicam o verdadeiro grau de consciência da passagem de First para Dysnomia: “tudo aconteceu em 2011 ou 2012, quando soubemos que iríamos começar a trabalhar num novo álbum. Passámos muito tempo a ouvir, e a tocar, música africana que incluía muitos ritmos sofisticados que nos inspirou a fazer algo nesse género. Começámos a ir nessa direção e decidimos não repetir o que tínhamos feito, ou seja, música improvisada. Não há qualquer improvisação neste disco, é tudo executado tal como compusemos. Diríamos que a parte rítmica vem de diversas músicas africanas, enquanto a parte que as pessoas relacionam com eletrónica vem da escolha dos sons. Também tocamos os nossos instrumentos de um modo ligeiramente não convencional e essa palete sonora talvez soe um pouco eletrónica”. De facto, a estranheza que notamos e nos confunde vem tanto da estrutura como do som. Numa primeira audição, Dysnomia não parece existir num reino acústico. Há uma aproximação dos músicos aos seus instrumentos que distorce o que conhecemos deles. À Interview, Amino Belyamani revela algumas das extended techniques que usaram: “o que me inspirou foi um álbum do Chick Corea e do Bobby McFerrin. McFerrin faz toda uma cena vocal meio louca e o Corea improvisa à sua volta, e num determinado momento ele começa a tocar um groove rítmico forte usando a mão esquerda para abafar as cordas do piano e a mão direita para tocar normalmente. Apaixonei-me por aquele som. Aqui e ali uso-o quando improviso mas nunca o desenvolvi para além do som que se altera no momento em que o toco. Era essa a extensão da minha compreensão e aplicação dessa técnica. Nos últimos três ou quatro anos, estive muito interessado nas minhas raízes, na música marroquina, na africana, comecei a emular o som de instrumentos de cordas – a kora do Mali, ou o ardin da Mauritânia – com o meu piano. Aos poucos, pacientemente, começou a ser sempre o meu som, e com o desenvolvimento desta composição dos Dawn of Midi, tornou-se mais claro que este era o ‘Som’”. Sobre o contrabaixo, Aakaash Israni explica que o seu objetivo foi criar uma aproximação perfeita ao piano: “há imensas harmonias no piano, cerca de 80%. E como Amino está a tocar esses harmónicos nas cordas e eu estou a tocar harmónicos nas cordas, às vezes é difícil perceber de onde vem um determinado som. É algo que fizemos de propósito, claro. Mas em questões de técnica, não é nada de extraordinário; é mais sobre a seleção de sons”. Falta Qasim Navqi, o único dos três que não participou na escrita de Dysnomia, embora seja talvez o vértice mais contagiante: “porque o piano e contrabaixo, em termos de frequências, ocupam muitos dos registos médios e graves, a bateria, ironicamente, tinha de preencher o espectro das altas frequências. Então, tivemos de alterar o instrumento para que soasse mais agudo: fio de pesca, colado por debaixo das peles para criar um zumbido. Soa a algo eletrónico. Mas vem também muito da música folk, como a marroquina, por exemplo, onde se usa também fio nas percussões para criar esse zumbido. Tinha também duas tarolas que foram afinadas de modo estranho. Foi assim que fizemos. E sem címbalos! Porque a peça era tão rítmica, puramente rítmica, que qualquer percussão ou címbalo que tivesse um som prolongado iria sair do diálogo que estaria a ter com os restantes instrumentos. Por isso, não há címbalos apenas um prato de choque. E também usámos um bombo independente para criar um “ataque” mais seco, como um eco”.
Toda esta estratégia técnica não aparece de repente: os três músicos, até chegarem à forma final de Dysnomia, concluíram uma maratona de 150 ensaios durante dois anos. Uma regalia que é quase um privilégio raro na música dos nossos dias. Havia uma espécie de objetivo superior que os levou a procurarem algo, uma chave para a sua música enquanto coletivo. Ao blog da Saint Paul Chamber Orchestra dizem que “o verdadeiro desafio de qualquer performance musical é oferecer uma quase-perfeita execução de uma história sonora em tempo real. Cada nota precisa de ser executada com a mais urgente intenção, e cada duração, seja uma nota ou silêncio, tem de ser respeitado com o seu correto valor quântico. Nós não nos satisfazemos e o público não se satisfaz com uma performance matematicamente correta em termos de intervalos de tempo. É o swing coletivo de cada frase rítmica que permite que a música soe acertada e respire naturalmente. A este swing não pode ser dado um valor determinado, daí o termo quântico. Só pode ser aprendido através da audição e compreensão corporal, para depois se ensaiar até sentirmos que estamos a abandonar todos as conquistas musicais e a transformarmo-nos em guardadores de cabras”.
Dawn of Midi assumem a sua sede em Brooklyn, unindo Paquistão, Índia e Marrocos, os seus locais de origem, um triângulo que traz três vértices do mundo para uma metrópole habituada a aglutinar culturas. Todavia, é em Los Angeles que Aakaash Israni, Amino Belyamani e Qasim Naqvi se conhecem quando frequentam o California Institute of Arts, em 2006. Perceberam que tinham uma ligação muito especial na música quando começaram a improvisar em trio, fazendo-o numa sala de ensaios às escuras para amplificar o poder da audição. First, editado em 2010 na Accretions, e Live, um EP lançado no ano seguinte, registam esses anos de prática em torno da improvisação, chamando a atenção da comunidade jazz e recebendo elogios da crítica especializada. É nessa altura que visitam o Museu de Serralves no Porto para estrear o filme Kashmir com o realizador Prashant Bhargava, o resultado de uma bolsa artística da Chamber Music America. Em 2013, Dysnomia é disco do ano para a New Yorker e para a NPR, e vemos os Dawn of Midi a caminhar num sentido bem diferente: a composição. Mais elogios, excelentes críticas, todas apanhadas de surpresa, lutando arduamente para classificar o novo som e descobrir se era mais um disco de jazz, se era música de dança, se podia ser ambos, ou se havia algo de novo por rotular. Israni explica à Interview que esta dificuldade de chamar as coisas pelos seus nomes não é inesperada: “nunca haverá ninguém capaz de ganhar um debate sobre o que as palavras significam para as pessoas. Todos se esforçam mas cada um tem a sua relação particular com determinadas palavras. Por isso, essa coisa do jazz e não-jazz nunca se resolverá, porque ninguém sabe o que essa palavra quer dizer. Mas eu não acho que a dança esteja necessariamente fora do jazz. O jazz já foi música para dançar, o tempo é o ritmo a ser tocado pela banda, e estamos a ouvir a ritmo e a dançar com ele. Nesta nossa música, muitas das vezes tocamos o que está à volta e o silêncio é que é o ritmo. E sentimos isso caso haja compreensão ou não. Tal como os meus pais, que não percebem, mas sentem, e mexem a cabeça, e batem com os pés no chão. Todos os que ouvem o disco não ficam quietos. Acho que tem a ver com espaço positivo e negativo. Conhecem aquela imagem famosa que quando olham para o espaço branco é um vaso e quando olham para o espaço negro é uma cara? Esta coisa do espaço positivo e negativo é como o tempo: tocar tudo exceto a batida, deixando-a ficar nesse espaço negativo. E assim, a batida torna-se ainda mais aparente no corpo do ouvinte”. Belyamani conclui: “é isso que habitualmente induz o transe. É por isso que é complicado ficar em transe num concerto de rock. Mesmo que seja uma banda incrível, não é fácil induzir esse estado porque estás a tocar o que estás a ouvir. Quando o teu corpo está a tocar o que não está a ser tocado, e assim dás a volta toda, e o transe aparece naturalmente”.
Como dizia a revista New Yorker: de longe os Dawn of Midi podem parecer um grupo jazz… Mantenham-se perto deles para ouvir as diferenças.
Menores 30 anos: 5€
Sinopse
Se dúvidas houvessem, é o tempo que melhor tem definido o poder de Dysnomia. Editado em 2013 com poucas salvas, o álbum foi gerando elogiosas críticas de imprensa inesperada, criando um culto imparável que culminaria com o convite de Nils Frahm para servirem de banda de suporte na sua digressão pelos Estados Unidos em finais de 2014. Restava começar tudo de novo: é então que a Erased Tapes, editora de Frahm ou A Winged Victory For The Sullen, decide reeditar Dysnomia em 2015, reforçando a convicção que ao segundo álbum os Dawn of Midi tinham proposto um clássico moderno. E a surpresa é tanto maior quanto a distância para a sua obra de estreia, na qual o trio de Brooklyn fala a língua do free jazz. Pelo contrário, Dysnomia calcorreia estradas opostas à improvisação, desenhando meticulosamente uma estrutura repetitiva onde cada nota é ponderada e executada com perfeição geométrica. Deixa-nos a pensar, hipnotizados, em The Necks, embora nos abra o espírito para o ritmo de África e outros locais indefinidos, como se escutássemos as dobras e vincos da aglutinação de vários estilos musicais. Dawn of Midi junta músicos com raízes marroquinas, indianas e paquistanesas, e talvez isso ajude a explicar, ou a confundir, o nomadismo da sua música. Mas Dysnomia não precisa de explicação nem de mapa: “quisemos algo visceral, algo que despertasse os nossos impulsos instintivos para a dança”. Soltemos o nosso corpo, então.