Folha de Sala
Kids got heart
Recentemente, Bill Callahan revelou numa entrevista que, quando decidiu desistir da universidade para gravar um disco, o fez “simplesmente para ser feliz”. Para um homem que escolheu a obscuridade como território para criar música — durante grande parte da sua carreira editou unicamente sob o pseudónimo, nada inocente, de Smog —, esta declaração não é menos do que imprevisível. Mesmo para aqueles que acompanham o seu percurso de perto desde o início dos anos 1990, reina a noção de que Bill Callahan é um homem enigmático, sisudo e dono de um humor negro. Ao longo de quase trinta anos de carreira, granjeou fama de lacónico, premiando com o silêncio as perguntas dos incontáveis jornalistas que o tentaram perceber e desvendar. E àqueles que decidiram seguir diligentemente a sua música, enquanto Smog mas também em nome próprio, restou encontrar nas canções as respostas para esses hiatos.
Tudo começou no Maryland com um gravador de quatro pistas, uma guitarra e uma voz indomada. A perseguição de um ideal de juventude insubmissa, as influências do tom lúgubre de alguns artistas country, como Kris Kristofferson, ou do imaginário do escritor de policiais James M. Cain, e a exaltação do espírito punk da vizinha Washington dos anos 1980 cristalizar-se-iam nos seus primeiros discos. Foi apenas ao terceiro disco que Callahan preteriu enfim a gravação caseira pelo estúdio, editando pela Drag City — que viria a ser a sua editora de sempre —, e abrindo caminho para o que se revelaria uma carreira de progressiva afinação na escrita de canções. Em 1997, Jim O’Rourke — mais tarde, membro efémero dos Sonic Youth — entrou em estúdio com Callahan para produzir Red Apple Falls e assim se deu o primeiro tomo da sua obra. Nos anos seguintes, calcificou-se a espinha dorsal da sua música com discos como Knock Knock, Dongs of Sevotion ou Supper. Foi com A River Ain’t Too Much To Love — para muitos a sua magnum opus — que decidiu libertar-se do pseudónimo, mas a logística prévia impediu-o de lançar o disco como Bill Callahan. O disco seguinte, Woke on a Waleheart, marcaria então o início das edições em nome próprio e a passagem para uma fase apolínea da sua música. Uma súbita mudança de atmosferas nas canções, muitas vezes atribuída à influência de Joanna Newsom, harpista norte-americana e companheira de Callahan por esta altura. Quando questionado, ainda na atualidade, pela razão que o fez abandonar o alter ego Smog, Callahan responde simplesmente que menos nomes entregam a música de forma mais sincera e que “o ideal seria não ter de mostrar nenhum nome sequer”. Talvez por isso os discos mais recentes, Sometimes I Wish We Were An Eagle, Apocalypse e Dream River, se revelem mais despojados e reduzidos ao essencial; enriquecidos com novos arranjos e instrumentos, contudo mais minimalistas nas letras e a evocar uma tranquilidade difícil de imaginar no início da sua carreira. Porventura, é fruto dessa tranquilidade (e inusitado sentido de humor) a atração pelo risco de, por exemplo, reconverter Dream River num disco dub sob o título Have Fun With God. Ou de cartografar novos territórios da sua obra, editando, também pela Drag City, livros de desenho e um romance epistolar intitulado Letters for Emma Bowlcut.
Mas seja em que suporte for, a sua força é a palavra. Primeiro, munidas de crueza e intensidade, mais tarde, embebidas de subtileza, as suas letras foram sendo confundidas com autobiografia e constituindo-se numa mitologia composta por personagens em conflito com os grandes dilemas da vida comum. Disco a disco, ouviu-se na sua voz de barítono, e em tom confessional, o confronto latente com a inevitabilidade do destino humano e quase sempre a vitória de algum niilismo sobre ele. Um romantismo falível mascarado de existencialismo e alimentado pelo recurso obsessivo aos mesmos motivos e elementos poéticos em muitas das suas canções: o vento e o rio, os cavalos e os pássaros, o álcool e o desconforto. O manejo das palavras, com uma simplicidade e eficácia quase literárias, acabou por lhe valer a admiração de músicos insuspeitos e a consolidação, lenta porém segura, do seu nome como um dos mais idiossincráticos escritores de canções contemporâneos, não raras vezes comparado a Leonard Cohen. Em 2010, o já desaparecido Gil Scott-Heron escolheu uma canção de Callahan para marcar o seu regresso aos discos 16 anos depois do seu último original. I’m new here, uma balada apropriadamente sobre redenção e segundas oportunidades retirada de A River Ain’t Too Much To Love, acabaria por ser o título do longa-duração de Scott-Heron e a terceira faixa do disco. Na Europa, Sylvain Chauveau e Stephan Mathieu selaram a sua colaboração num disco de versões intitulado Palimpsest, que revisita e reinventa canções de todo o repertório Smog e que apresentaram no Teatro Maria Matos no ano passado. Muito recentemente, Stephen Malkmus, ex-Pavement, e Tom Krell, ou How To Dress Well, arriscaram as suas próprias versões em canções extraídas do acervo de Callahan. Malkmus, um admirador discreto, tocou a sua versão Cold Blooded Old Times num festival em Baltimore e Krell lançou online uma gravação caseira de Teenage Spaceship, a sua “tentativa de fazer jus a uma das melhores canções que já ouvira”.
Paradoxalmente, o homem impenetrável nas entrevistas é também o homem que quebra fronteiras entre música e vida pessoal, colaborando sempre de perto com as mulheres por quem se apaixona. Ao lado de Cynthia Dall (falecida em 2012), Chan Marshall e Joanna Newsom, viveu, compôs e partilhou a estrada. E em 2011, quando aceitou um convite modesto para filmar um documentário sobre a tournée de Apocalypse, iniciou mais uma parceria artística e pessoal com a realizadora Hanley Banks, de quem está noivo.
Na vertigem dos seus 50 anos, Bill Callahan “mudou radicalmente, permanecendo exatamente igual”. Ainda se revê no mesmo miúdo que deixou os estudos para ser feliz e a música “ainda é a única coisa que nunca muda, que é constante e elementar e que, por isso, sabe bem”. Em Winter Road, canção que encerra Dream River, canta que “When things are beautiful, just keep on”. Nas suas palavras, a experiência dos anos suavizou-o e fê-lo aceitar a beleza das coisas. Está, sem dúvida, mais recetivo às atenções do mundo exterior, como atestam não só Apocalypse: a Bill Callahan Tour Film, o documentário que resultou do convite de Hanley Banks e que chegou a Lisboa pela mão do Doclisboa e, mais tarde, pelo Teatro Maria Matos; mas também The Life and Times of William Callahan, livro de fotografia de Chris Taylor, também autor da capa de Sometimes I Wish We Were An Eagle, editado em 2013. Neste último ano, Callahan atingiu a cúpula das listas de melhores discos do ano de algumas publicações mais generalistas. Lentamente, é-lhe atribuído o estatuto devido, retirando-o da sombra e resgatando-o ao secretismo dos seus pacientes seguidores pelo mundo fora. Da imagem do homem de poucas palavras sobressai agora a ideia de um miúdo que outrora só quis seguir o coração. E é certo que sempre soubemos que Bill Callahan pertence ao panteão dos grandes trovadores contemporâneos, paredes meias com nomes como Bonnie ‘Prince’ Billy ou Nick Cave, mas agora parece-nos que ele também o sabe.
Não elegível a descontos e não se insere no cartão Maria & Luiz.
Bilhetes à venda nas bilheteiras do Cinema São Jorge e Teatro Maria Matos e restantes pontos de venda.
Excecionalmente não se aceitam reservas.
Sinopse
“Álbum do ano.”
in MOJO
“Dream River pertence ao melhor que Callahan nos deu.”
Somam-se já quinze discos desde que o Bill Callahan de outrora deixou os estudos para gravar um disco simplesmente “para ser feliz”. Primeiro sob o pseudónimo (Smog) e depois em nome próprio, evidenciou-se como um dos melhores escritores de canções norte-americanos, angariando um séquito de seguidores transversal a gerações e a estilos e que nele reconhecem referências tão díspares quanto evidentes, como Dolly Parton ou Jandek. A sua voz icónica e as suas melodias teimosamente perfeccionistas deram sentido a baladas de misoginia, elegias ao amor, odes à infância e epopeias da emancipação do homem. Em Dream River, Bill Callahan volta a privilegiar as histórias que parecem brotar-lhe sob os dedos e cartografa mais um território da sua obra ― que também se espalha pelo desenho ou pelo romance epistolar ― revelando uma paixão imprevisível pelo dub, género celebrado das Caraíbas. Depois de termos vislumbrado o homem por detrás das canções no documentário Apocalypse: a Bill Callahan tour film de Hanley Banks, em 2012, testemunhamos agora o fim de um longo hiato com o regresso de Bill Callahan, desta vez em carne e osso, a Lisboa num concerto especial no Cinema São Jorge.
1.ª Parte
Circuit Des Yeux
Circuit Des Yeux é o enigmático nome artístico de Haley Fohr, que, com apenas 24 anos, conta já com 4 álbuns editados. Nasceu em Bloomington, no estado de Indiana, e a sua mudança recente para Chicago acabou por ficar livremente documentada no seu último trabalho, Overdue. Dona de uma expressividade e dramatismo invulgares, Fohr impregna a sua folk descaracterizada com vocalizações fantasmagóricas e oníricas, fazendo lembrar ao site Pitchfork nomes como Diamanda Galás, Antony ou Nico. É sobretudo com este disco que a norte-americana preencherá a solo as aberturas de nove concertos de Bill Callahan na Europa.